1 de abril de 2008

Vozita

Umberto Eco

Vozita. Flor da minha adolescência, angústia das minhas noites. Não poderei voltar a ver-te nunca mais. Vozita. Vozita. Vozita. Três sílabas, como um abandono todo tecido de doçura: Vo-zi-ta. Vozita, possa eu recordar-te até que não seja apenas treva a tua imagem, e sepulcro somente o teu lugar.

Chamo-me Umberto Umberto. Quando tudo aconteceu, estava eu sucumbindo com audácia ao triunfo da adolescência. No dizer dos que me conhecem, não dos que me vejam agora, leitor, emagrecido nesta cela, com os primeiros sinais premonitórios de uma barba profética que me endurece as maçãs do rosto, no dizer dos que me conhecem, eu era então um bravo efebo, com essa sombra de melancolia que penso dever aos cromossomos meridionais de um antepassado da Calábria. As jovenzinhas que conheci cobiçavam-me com toda a violência dos seus úteros em flor, tornando-me a telúrica angústia das suas noites. Dos rapazinhos que conheci pouco recordo, porque me encontrava atrozmente na condição de presa de um paixão muito diversa, e os meus olhos mal afloravam as maçãs doiradas dos rostos deles, à contraluz de uma penugem cerosa e transparente.

Eu amava, amigo leitor, e amava com a loucura dos meus anos mais célebres, amava as que tu chamarias, com distraída inércia, “velhas”. Desejava, do mais profundo emaranhado das minhas fibras de imberbe, essas criaturas já marcadas pelos rigores de uma idade implacável, vergadas pelos ritmos fatais dos oitenta anos, terrivelmente minadas pelo fantasma apetecível da senilidade. Para designá-las, ignoradas pelos demais, esquecidas pela indiferença lúbrica dos usagers habituais de sólidas friulanas de vinte e cinco anos, adotarei, leitor — oprimido mesmo agora pelo regurgitar de uma impetuosa presciência que me corrompe todos os gestos de inocência que possa tentar —, um termo cuja exatidão não desespero: parquitas.

Que direis, vós que me julgais (toi, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!), da caçada matinal que se oferece nos pântanos deste nosso mundo subterrâneo ao apaixonado cheio de ardor das parquitas? Vós que correis pelos jardins vesperais, dedicados à caça banal de garotinhas ainda mal começadas a intumescer, que sabeis vós da caça submissa, umbrátil, grotesca que o apreciador de parquitas pode conduzir pelos bancos dos jardins antigos, na sombra olorosa dos basiliscos, pelas trilhas ensaibradas dos cemitérios suburbanos, à hora da missa aos domingos na esquina dos asilos, à porta dos albergues noturnos, nas filas salmodiantes das procissões em honra dos santos padroeiros, nas quermesses de beneficência, numa cilada amorosa cerradíssima e por desgraça inexoravelmente casta, para mirar de perto os rostos escavados por rugas vulcânicas, os olhos lacrimosos de cataratas, o movimento vibrátil dos lábios consumidos, afogados na depressão refinada de uma boca sem dentes, sulcados de quando em quando por um regato lugidio de êxtases salivares, as mãos triunfantes de nós, nervosas no tremor lúbrico e provocante do desfiar de um rosário de infinita lentidão!

Nunca poderei fazer-te participar, leitor amigo, no langor desesperado dos encontros de olhos fugidios, o frêmito espasmódico de certos contatos labilíssimos, um toque de cotovelo no tropel do bonde (“Desculpe-me, minha senhora, quer sentar-se?” Oh, satânico amigo, como ousar então recolher o olhar úmido de reconhecimento e o “Obrigado, meu bom rapaz”, tu que terias desejado encenar ali mesmo a tua comédia báquica de possesso?), aflorar — roçando-o — um joelho venerável com a perna, entre duas filas de cadeiras na solidão da tarde de um cinema de bairro, apertar com ternura contida — esporádico momento do mais extremo contato! — o braço ossudo de uma velhota que se ajuda a atravessar nos semáforos com ar contrito de jovem explorador!

As vicissitudes da minha idade risível induziam-me a outros encontros. Já disse que possuía uma aparência talvez fascinante, com as minhas maçãs do rosto tisnadas e um delicado rosto de moça oprimida por uma virilidade mórbida. Não ignorei os amores adolescentes, mas sofri-os, como um tributo às razões da idade. Recordo que uma tarde de maio, pouco antes do pôr-do-sol, quando no jardim de uma villa aristocrática — era um local próximo do lago vermelho do sol poente — estendi-me na sombra de um crepúsculo com uma moça cheia de pintas de dezesseis anos, implume, tomada de um ímpeto amoroso dos sentidos verdadeiramente constrangedor. E foi nesse instante, enquanto lhe concedia sem vontade o horizonte caduceu da minha taumaturgia púbere, que vi, leitor, deixando adivinhar-se a uma janela do primeiro andar, a silhueta de uma criada decrépita curvamente desdobrada em duas, enquanto despia ao longo da perna a massa informe de meias pretas de algodão. A visão fulgurante daquele seu membro cheio, marcado pelas varizes, acariciado pelo movimento inábil das velhas mãos aplicadas a desenrolar o volume da peça de vestuário interior, surgiu-me (olhos meus, concupiscentes!) como um atroz e invejável símbolo fálico, brandido por um gesto de virgem: e foi nesse instante que, apanhado num êxtase que a distância exasperava, explodi agonizante numa efusão de assentimento biológico, que a moça (imprudente rãzinha, quanto te odiei!) recolheu gemebunda, como se de um tributo aos seus fascínios acerbos se tratasse.

Terás jamais compreendido, meu néscio instrumento de paixão em atraso, que fruíste das iguarias de uma outra mesa, ou ter-me-á a vaidade obtusa dos teus poucos anos feito aparecer-te como um cúmplice, inesquecível e fogoso? Depois de partires no dia seguinte, com a família, enviaste-me, no fim de uma semana, um cartão assinado com estas palavras: “A tua velha amiga”. Intuíste a verdade, revelando-me a tua perspicácia no uso acertado do adjetivo, ou terá sido apenas a bravata verbal de uma aluna de ginásio em guerra com as boas maneiras filológico-epistolares?

Como fixei desde então, tremendo, tantas janelas na esperança de ver surgir a silhueta desnuda de uma octogenária no banho! Quantas noites, semiescondido por uma árvore, consumei as minhas orgias solitárias, com o olhar na direção da sombra perfilada, atrás de uma cortina, de uma avó suavissimamente entregue a uma refeição salivante! E a horrível decepção, súbita e fulminante (tiens, donc, le salaud!) da figura que se subtrai à mentira das sombras chinesas e se revela no peitoril como aquilo que realmente é: uma bailarina nua, de seios túmidos e ancas ambarinas de égua andaluza!

Assim, durante meses e anos, corri insaciado à caça das adoráveis parquitas, entregue a uma busca que, bem o sei extraía a sua origem indestrutível do instante do meu nascimento, quando uma parteira desdentada e velha — resultado das buscas infrutíferas do meu pai, que, àquela hora da noite não foi capaz de encontrar outra senão ela, com um pé já na cova — me livrou da prisão viscosa do seio materno e me mostrou à luz da vida o seu rosto imortal de jeune parque.

Não procuro justificações para vós, que me ledes (à la guerre comme à la guerre), mas quero pelo menos explicar-vos a fatalidade do concurso de acontecimentos que me levou à vitória.

A festa para que fui convidado era um miserável petting party de jovens despidas e universitários impúberes. A luxúria flexível daquelas mocinhas indesejadas, a oferta negligente que faziam dos seios através da blusa desabotoada no impulso de um passo de dança, desgostava-me. Estava já pensando em escapar-me rapidamente daquele local de vulgar comércio de virilhas ainda intactas, quando um som agudíssimo, quase estridente (e como poderei alguma vez exprimir a freqüência vertiginosa, a rouca descida das cordas já gastas, l'allure suprème de ce cri centenaire?), um lamento trêmulo de mulher velhíssima mergulhou no silêncio os circunstantes. E na moldura da porta, vi-a, com o semblante da longínqua parca do choque pré-natal, marcado pelo entusiasmo cadente da cabeleira encanecidamente lasciva, o corpo encarquilhado que vincava com ângulos agudos o tecido liso e negro, as pernas flébeis que o tempo emagrecera e curvara inexoravelmente em arco, a linha frágil do fêmur vulnerável, perfilando-se por baixo do pudor antigo da venerável saia.

A mocinha insípida que nos recebera exibiu um gesto de cortesia enfadada. Ergueu os olhos para o céu e disse: “É a minha avó...”

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